O Lapf foi criado em 2008 no âmbito do Departamento de Educação da PUC-Rio, tendo sido registrado no diretório do CNPq entre 2009 e 2011. Seu objetivo foi a promoção da análise dos processos de agenciamento de identidades, memórias e territórios coletivos, em sua relação com os processos de produção e transmissão do conhecimento, tanto em suas modalidades escolares quanto não escolares. A partir de 2012, porém, suas atividades regulares foram encerradas. Este espaço permanece disponível como registro desta experiência de pesquisa e como meio para que seus antigos participantes eventualmente possam continuar divulgando e promovendo o tema.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Da ‘educação do campo’ à ‘educação quilombola’

Da ‘educação do campo’ à ‘educação quilombola’:
O caminho aberto pela centralidade do território

J. M. Arruti

Depois de mais de uma década de luta por uma educação diferenciada para a população do campo, foi aprovado, em novembro de 2010, o decreto (nº 7.352) que “dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA”. Nesta luta, os movimentos sociais do campo buscam reverter duas características fundamentais do sistema educacional brasileiro: a lógica centrada no urbano e a predominância de políticas públicas generalistas que desconhecem as especificidades de determinadas populações, entre elas a do campo. Na história da educação brasileira o campo sempre foi percebido como um lugar “outro” que, a partir de uma perspectiva francamente etnocêntrica e evolucionista, representa a carência e o atraso, isto é, espaço social a ser desenvolvido dentro dos padrões urbanos, e não em função de suas características próprias. É contra tal lógica que se defende a proposição de uma política diferenciada, cujo objetivo não deve ser mais levar a mesma escola a todos os lugares e populações, mas criar uma escola que reconheça e dialogue com esta diversidade.

Esta necessidade emerge da constatação de que uma das maiores e mais importantes conseqüências daquela lógica urbanocêntrica é a formação de uma juventude que não tem mais nenhuma empatia com o modo de vida de sua própria família e que muitas vezes está pronta a trocar o campo pela periferia urbana. Uma “educação do campo” pretende criticar e reverter estes aspectos, enfatizando a importância de incorporar na definição da educação, a importância da terra e do território, da cultura e da identidade dos povos do campo.

É por isso que no documento de 2010 o objetivo da política de educação do campo é definido como a “ampliação e qualificação da oferta de educação básica e superior às populações do campo”, que passa a ser responsabilidade da União em colaboração com os estados e municípios. Neste documento determina-se que as escolas situadas em área rural ou urbana, mas que atendam a população do campo, observem as seguintes recomendações:
  •  Elaborem seu projeto político pedagógico (P.P.P.) específico, que articule processos de investigação, desenvolvimento social e sustentável e mundo do trabalho; 
  •  Ofereçam formação inicial e continuada de professores; 
  •  Garantam infraestrutura e transporte, materiais e livros didáticos específicos, além dos equipamentos básicos, como biblioteca, área de esporte e laboratórios; 
  •  Considerem a necessidade de flexibilizar o calendário escolar; 
  •  Incorporem a perspectiva da pedagogia da alternância, especialmente para o Ensino Médio e Superior; 
  •  Trabalhem com classes multisseriadas, especialmente nos anos iniciais; 
  •  Ofereçam alimentação escolar de acordo com as especificidades e características da região do campo, inclusão digital para esta população e elaboração de material didático. 
Um elemento central na justificativa de uma “educação do campo” é a nova atenção e importância que se deve dar ao vínculo entre terra, território e escola. Segundo pensadores como Miguel Arroyo, a atenção ao território é a recomendação principal que deveria nortear a formação de educadores do campo.

Mas, se levarmos a sério esta recomendação, acabaremos por perceber que existem muito mais modos de se relacionar com a terra do que aqueles previstos sob a categoria de “camponês”, “agricultor familiar” e “trabalhador rural”, que em geral descrevem as “populações do campo” e que está na base da reflexão sobre a “educação do campo”.

Isso implica reconhecer que, se a crítica que a “educação do campo” faz às escolas convencionais é boa, o modelo que é proposto no seu lugar acaba apresentando também um viés homogeneizante. As definições dadas pela lei às “populações do campo” (assim como acontece com a definição de “camponês”) está centrada no “modo de produção”, isto é, na sua forma econômica, sem dar a devida atenção ou retirar todas as consequências de questões como identidade, história e memória. Isso acontece porque, apesar de sempre se saber da grande parcela de população negra que compõe o campesinato e o proletariado rural brasileiro, isso nunca conferiu particularidade a essa população, seja do ponto de vista da historiografia, da militância social ou das políticas públicas. O debate em torno de uma reforma agrária ampla e democrática parecia dar conta de todos os dilemas vividos por essa população.

Foi apenas em meados dos anos de 1980 que os rumos da discussão sobre a reforma agrária começaram a apontar para certas particularidades da posse da terra das populações negras rurais do norte do País. Chamou-se a atenção para a existência de inúmeras situações em que o campesinato se organizava de forma distinta da que sempre orientou os assentamentos de reforma agrária, baseados em um parcelamento individualizado da terra, próprio à herança cultural européia.

Assim, se voltarmos à recomendação de se dar atenção e importância ao vínculo entre terra, território e escola, afirmado pelos princípios que estão na origem da “educação do campo”, será necessário observar que as comunidades quilombolas têm como uma de suas características definidoras justamente as “terras de uso comum”, o que deveria ser levado em conta na imaginação de uma novo formato de escola para estas populações. O uso comum, a memória da escravidão, o racismo institucional a que foram historicamente submetidas, a identidade de negros, acabam ampliando o quadro de questões que deveriam ser contempladas por uma escola do campo dirigida para comunidades quilombolas.

Mas, ao contemplar tais características e demandas, esta escola continuaria sendo “do campo” ou se converteria em “escola quilombola”?

É nesta direção que aponta o documento da Conferência Nacional de Educação – CONAE 2010. O documento recomenda a elaboração de uma legislação específica para a educação quilombola que observe:
“o direito à preservação de suas manifestações culturais e à sustentabilidade de seu território tradicional” e
“a garantia de participação de representantes quilombolas na composição dos conselhos referentes à educação, nos três entes federados”.
E, de forma parecida com o que acontece no documento sobre “educação do campo”, nele é dada grande ênfase ao tema da formação dos professores (quatro dos oito itens são sobre isso), além de se acrescentar uma atenção específica à elaboração “materiais didático-pedagógicos contextualizados com a identidade étnico-racial do grupo”.

Abre-se, assim, uma pauta de grande importância para o destino do movimento e das próprias comunidades. Uma pauta na qual pensar a educação é não implica apenas pensar o futuro, mas também preparar-se para as lutas do presente, agenciando de forma renovada o passado.

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